Génese

Génese

 

Pai e mãe

 

África oriental portuguesa – Província de Moçambique

Cidade de Lourenço Marques – 25 de Abril de 1954.

 Tudo começara naquela noite de Abril quando um casal partiu apressadamente de sua casa com um objectivo bem determinado.
Pelas ruas geometricamente traçadas da capital naquela madrugada tórrida, segue ao volante de um Volkswagen 1100 preto, um homem de 33 anos portador de alta estatura e cabelo grisalho.
Este cavalheiro de nome próprio Nuno, natural da Quinta de Almeara, em Torres Vedras, (Portugal), quinto filho de um lote de 9 irmãos, viera para Moçambique em 1952 integrado na empresa de construções Moniz da Maia e Vaz Guedes, designada para a concretização do projecto da barragem do Limpopo e das suas infraestruturas.
O seu olhar atento e o suor escorrendo pela face, denunciavam, apesar do seu habitual semblante altivo e sereno, uma inconfundível determinação, temperada de ansiedade e notória expectativa.
O seu grande objectivo é chegar ao destino aproveitando para tal, todos os momentos que lhe permitem avançar sem perdas de tempo pelas avenidas e ruas vazias da cidade das acácias, em direcção à Missão de S. José de Lhanguene, na avenida do Trabalho (Bairro do Chamanculo).
Ao seu lado, com um ar sofrido, e em sintomático trabalho de parto, segue a sua companheira Leonor, com quem casara em 1951, senhora de 28 anos natural de Lisboa. Terceira filha de uma irmandade de 4, a Leonor de estatura média é portadora de uma beleza exótica coroada por uma cabeleira de um tom negro azeviche.
Leonor, que já vivera esta experiência em Lisboa, em 1952 com o nascimento do Rodrigo Afonso, seu primeiro filho, deixa transparecer entre esgares e gemidos, evidentes sinais de incómodo, segurando com ansiedade a pronunciada barriga onde ao longo dos últimos nove meses gerava um novo membro da família.
Percorrido por um frenesim próprio de quem dispõe de escasso tempo para resolver uma situação desta natureza, o Nuno, aos comandos do seu VW, de volante à direita importado um ano antes da Alemanha, dá finalmente entrada nos jardins daquela missão de freiras Salesianas, de arquitectura colonial.
Ao seu encontro e perante o alívio deste casal de eminentes progenitores, vêem passado momentos, 3 senhoras de meia idade portadoras de vestes brancas e uma cadeira de rodas, deixando transparecer em gestos de uma evidente eficácia, a sua postura de enfermeiras, inseridas num contexto marcadamente religioso.
A sofrida Leonor é de imediato conduzida ao interior da missão deixando o exausto companheiro no exterior que recebe, passados momentos, alguns familiares que correram para a Missão quando souberam da notícia.
No interior do singular edifício a Leonor é conduzida a uma sala não longe da entrada e colocada junto a uma janela escancarada que deixa entrar a escassa frescura daquela madrugada austral.
Chegara entretanto à sala, a chefe das parteiras, a Irmã Protegida, portentosa senhora que olhou do alto do seu metro e setenta e cinco para a sofrida Leonor, soltando um folgado sorriso, e dizendo:
– Então minha linda, cá tem mais um herdeiro para alegrar a família!
A aflita Leonor, fulminada por mais uma violenta contracção, esboça um amarelado sorriso respondendo!
– Ho! Irmã, não perca tempo porque ele já aí vem!…ai!
-Pois que venha minha querida, e que venha forte e grande como o pai, riposta a garbosa Irmã, encomendando os necessários toalhetes e alguidares às irmãs Ernesta e Teresa que rodopiavam à sua volta.
A Irmã Protegida é conterrânea do Nuno, oriunda do convento do Varatojo, perto de Torres Vedras onde ingressara em tenra idade, vindo destacada como missionária para Moçambique no inicio dos anos 50. Desde então dedicou-se a servir a comunidade moçambicana na Missão de S. José de Lhanguene, construída pela Igreja Salesiana a partir de 1951, por solicitação do Cardeal D. Teodósio de Gouveia.
Leonor, senhora de uma extraordinária intuição, sentindo a sua hora próxima e perante a actividade das assistentes, na adequada preparação de mais esta espantosa demonstração da mãe natureza, debate-se com contracções dolorosas e intermitentes. Num misto de ansiedade e emoção, lança um desesperado olhar para a Irmã e, contraindo o corpo num último esgar, fecha intensamente os olhos e, num ato que as palavras não alcançam, expulsa para o éter, os 4,450 kg de um ser envolto em fluidos amnióticos e num cordão umbilical de um rosa escarlate.
Eram 4h e 15 da madrugada e debaixo de uns cálidos 38º Celsius, quando fui recebido nos enérgicos braços da Protegida, esboçando a tradicional careta dos recém-chegados ao mundo dos homens.

 Este momento é a génese de um percurso de vivências fortes, júbilos e mágoas.
De uma trajectória experimental de descoberta da vida, recheada de múltiplas questões cujas respostas foram surgindo ao longo desta por vezes intangível e transcendente passagem pela via láctea.
Embalado neste grande milagre da respiração humana, eu daria assim o meu primeiro berro a plenos pulmões…em direcção a vida.

Missão de S. José de Lhanguene.

Missão de S. Jose de Lhanguene

9 comentários

9 thoughts on “Génese

  1. Teresa Amaral

    Maravilha! Vi logo que tinhas tido a ajuda para nascer de uma irmã Teresa!!

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  2. As Teresas são uma força da natureza!….rsssss

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  3. Marcos-AD Barros

    Bem, tal natividade já o bem recomendava. 4.450kg. Maçiço!

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  4. “Este momento é a génese de um percurso de vivências fortes, júbilos e mágoas.
    De uma trajectória experimental de descoberta da vida, recheada de múltiplas questões cujas respostas foram surgindo ao longo desta por vezes intangível e transcendente passagem pela via láctea. Embalado neste grande milagre da respiração humana, eu daria assim o meu primeiro berro a plenos pulmões…em direcção a vida.”

    Bom paragrafo, bem escrito, gostei. E nasceste no 25 de Abril? Puxa ja vinhas com o espirito revolucionario de Lusitano!!! Olha tambem nasci no mesmo ano que tu mas no dia 25 de Dezembro, Ambos teus pais muito belos mas tua mae e uma estampa Lisboeta!

    Ok vou para o proximo episodio, ate ja

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  5. I love you love it…em frente companheiro!

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  6. Bli

    África realmente foi o continente dos nossos pais, onde foram guerreiros também, realizando os seus quereres. Fica sempre a saudade.

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    • Este legado dos nossos pais fundado em erros históricos de uma Nação conquistadora, permitiu-nos fundar o nosso ADN num lugar único no planeta Terra – A costa oriental d´África…dando-nos uma visão singular de um mundo à parte!…o privilégio de uma existência sem par…e acho que soubémos aproveitar…o pior é que na entrada numa idade mais madura, não estávamos preparados para enfrentar o mundo lá fora…agressivo, selvagem, exigente!…
      Mas a passagem pela via láctea continua…há muitas páginas em branco…vamos escrevê-las!

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  7. Maria Teresa.Barbosa.

    Por mero desconhecimento meu,não tinha lido esta maravilhosa descrição ,do nascimento do talentoso Francisco Cunha que.em boa hora veio ao mundo.

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  8. Não seguiu a saga desde a sua génese Teresa?
    Mas vale mais tarde que nunca, certo?
    Calorosas saudações e muito obrigado!

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